12 de setembro de 2007

Minha vida, como ela é - II

Uma e quarenta da tarde: toca o telefone, e uma voz aflita do outro lado diz: "É do escritório da tradutora?"

- Sim! Mas ela não está. Saiu para almoçar - respondi.
- Oh! Meu nome é Cássio (*). Estou precisando fazer a tradução de uma certidão de nascimento, para registrar meu casamento em cartório.
- Pois não. É só o senhor...

A voz do outro lado me interrompeu, falando em tom mais baixo, quase confessional. Ao fundo, várias vozes. Provavelmente estava na rua.

- Olha! É o seguinte. Eu vou levar o documento aí, mas preciso que você fale que ele só vai ficar pronto na segunda-feira que vem, pois vocês estão sobrecarregados de serviço. Ok?!
- Tá, mas...

Novamente o corte.

- Oh! Eu já estou pertinho daí. A que horas termina o almoço?
- Às catorze horas.
- Avise a tradutora também, tá bom?! Assim, caso ela me atenda, não vai ser pega de surpresa. Até daqui a pouco.

Sem ouvir a resposta, desligou. Achei estranho, mas continuei trabalhando.

Duas horas da tarde: chega o indivíduo, acompanhado de uma moça. Ele com cara de ansioso, ela com cara de brava.

- Boa tarde!
- Boa tarde! Em que posso ajudá-lo?
- Sou Cássio. Vim trazer a Certidão de Nascimento para traduzir - ele adiantou-se, colocando-se entre mim e a mulher, tampando a visão dela. Fazendo cara de súplica, me entregou o papel.


A primeira pontada de riso apareceu na minha cara. Dei as costas, e fui pegar uma caneta.

- Olha, Cássio, preciso de um telefone seu para contato, pois a tradutora ainda não chegou do almoço, e será ela quem fará o orçamento e sua tradução.
- Não tem como você me adiantar nenhum valor? Posso te pagar agora.
- Não. Não posso te passar valores, principalmente por estarmos em um processo de licitação para duas grandes empresas, o que trouxe um volume de serviço muito grande... Ela irá conversar contigo, pois provavelmente sua tradução será entregue somente na segunda-feira que vem.

A noiva desabou em um banco que estava atrás dele. Colocou a mão na testa, e me deu a impressão de ter ouvido um "Putamerda!" saindo de seus lábios, ou visto isso em um balãozinho perto de sua cabeça.

O sujeito fez cara de alívio, como um condenado salvo no último minuto da cadeira elétrica.

Novamente um riso em meu rosto. Eu não acreditava que estava fazendo parte daquele teatro malévolo, mas queria ver onde é que a coisa ia dar. Meu lado sarcástico resolveu manifestar-se, e eu disse:

- Olha! De repente eu converso com ela, e a tradução sai pra amanhã mesmo.

Pavor! A mulher me olhou de lado. Era pequena, branquinha, traços finos, e bem vestida, mas com uma expressão de severidade, que fiquei receoso do que poderia acontecer. O sujeito gelou. Era moreno, mas a cara ficou branca como cera. Ambos não tinham mais de 25 anos.

Saciada minha sede de sacanear alguém, tive medo de matar o pobre do coração, e corrigi:

- Mas acho improvável.... Tá vendo ali? - apontei para uma pilha de papéis - São parte dos documentos que fazem parte da licitação. Provavelmente trabalharemos domingo, e sua certidão vai ficar mesmo pra segunda, ou terça-feira... Vai saber.

(O que não era mentira, pois estávamos sobrecarregados mesmo)

Ele deixou a cruz imaginária cair de seus ombros. Ela abaixou a cabeça novamente, como quem dizia "Droga!".

Ainda arrematei dizendo que somente a tradutora teria a palavra final sobre o prazo de entrega e orçamento. Anotei seu telefone em um papel separado. A garota levantou-se e disse que queria ir embora, e foi saindo. Ele ficou, disse que era pra eu fazer um esforço, ao mesmo tempo em que juntava as mãos, em posição de prece, e fazia mímicas de "muito obrigado", pra mim.

Saíram do escritório, e eu comecei a rir.

- É cada um que me aparece!... - sentei no computador, e voltei a trabalhar.

Nem cinco minutos depois, toca o inferfone:

- Cássio!

Abri, e ele subiu. Entrou no escritório correndo, e sentou-se no banco.

- Cara! Muito obrigado!

Minha cara de curiosidade, misturada com riso, esperavam mais explicações.

- Você não faz idéia do que você me livrou. Putzgrila! - continuou - Essa mulher tá querendo casar comigo de qualquer jeito.

Aí, eu já estava gargalhando.

- Num é caso de rir, não, cara! Ela tá me pressionando. Você que é homem vai me entender. - daí inclinou-se na cadeira, apontando para o chão e afirmando categoricamente - Quando a mulher insistir demais pra casar, pula fora!

Olhos arregalados, gravata afrouxada, ele passava a mão na testa como animal que escapa do caçador. As caras dramáticas que ele fazia, e a situação inédita que eu tinha à minha frente, não me deixavam ficar sério: pela primeira vez, um sujeito queria, mas não queria um trabalho pronto. Ofereci-lhe um copo d´água. Ele aceitou. Quando voltei fui perguntando:

- Mas onde ela está agora?
- Dentro do carro, ué?! Deixei-a lá, e disse que viria aqui te subornar pra passar o trabalho na frente. Mas eu vim mesmo foi te agradecer... Inclusive... - levantou-se, pôs a mão na carteira e tirou algumas notas, que, com as duas mãos, colocou em minha mão direita.
- Toma aqui, ó!... Você merece isso, por ter me ajudado... Essa mulher é louca. Já jurou se matar se a gente não casar. Agora pensa bem, ela é cubana. Tá querendo casar lá em Cuba. E lá, ó, não tem desse negócio de "separação de bens", não. Casou: tá tudo em comunhão de bens... Raciocina comigo - dizia ele batendo o indicador na testa - Todo o patrimônio de meu pai tá em meu nome (batendo a mão no peito): fábrica, comércio, carro, casa, fazenda... Eu lá vou casar com uma pessoa que eu não amo?... Nem fu***!... Cara! Casamento é coisa séria! É pra vida toda! ... Se pintou dúvida: desista. Não é aquela pessoa mesmo que vai envelhecer contigo.
- Mas por que você não termina logo com ela? Ela tá grávida?

O sujeito fez o nome-do-pai instantaneamente. Foi o "Deus-que-me-livre" mais sincero que já ouvi alguém exclamar.

- De maneira nenhuma! Tõ usando 2 camisinhas, fingindo dor de cabeça, e até enviadando pra ver se ela se toca.

Caí na gargalhada novamente.
Ele encostou-se no balcão, e continuou explicando:

- Sério mesmo. A única coisa que sei é que não quero casar.
- Mas você já disse isso pra ela?
- Nãão! Ela não iria acreditar.
- Mas é fácil: só fazer assim "Não gosto mais de você. Não quero casar". Simples!
- Nada, cara! As coisas são mais complicadas do que você imagina.
- E o que eu faço com este documento?
- Ah! Fica com ele ali por umas duas semanas. Depois venho aqui buscar. Vou viajar com ela amanhã, e a gente só volta daqui a 10 dias. Vou ver se tomo coragem(**) e resolvo isso.

Não consegui entender o que seria mais complicado: ficar enrolando um ao outro, fingindo serem noivos, com ele se esquivando de casar, e ela insistindo; ou falar uma frase, clara, e dar um basta em tanta lenga-lenga.

Tomou outro gole dágua, e foi saindo pela porta. Parou entre os marcos, e disse:

- Olha! Não se esqueça de, hoje à noite, antes de dormir, você rezar assim (juntou as mãos e fechou os olhos): "Papai do Céu, ajuda o Cássio a se livrar daquela mulher!"

Sorriu e saiu.

Fiquei ali, rindo, e ainda sem acreditar na vida performática daquela peça-rara, quando a tradutora chegou. Contei-lhe a história, e ficamos rindo por um bom tempo das neuroses que as pessoas criam umas pras outras, com medo de dizer a verdade. Depois de muito rir, ela disse:

- Não sei se fico com pena dele, ou dela, pois acho que ambos estão em uma situação terrível, em um relacionamento falido, onde um não sabe o que o outro realmente quer, e com receio de agir para dar um basta.

- Vamos dividir o pagamento? - perguntei.
- Não! O serviço foi prestado por você - ela disse - eu não teria esta presença de espírito.

Vai saber o que se passa na cabeça dos dois. Espero que tenham se acertado. Falta de comunicação é um caso sério, hoje em dia.

Só sei que nesta história ganhei 30 reais que me salvaram o lanche, chicletes, uma entrada de cinema, e algumas passagens de ônibus. O único incômodo foi ficar com o maxilar e barriga doendo de tanto rir.

Foi a primeira vez que ganhei para não trabalhar.

(*) Claro que o nome dele não é Cássio.
(**) "Coragem" é uma pinga muito conhecida no norte de Minas, perto de Curvelo.

6 comentários:

Anônimo disse...

Hahahahaha, muito boa! Você vai estar encrencado se um dia a muchacha suspeitar dessa combinação...

Anônimo disse...

Hahahahaha, muito boa! Você vai estar encrencado se um dia a muchacha suspeitar dessa combinação...

testeeee disse...

kkkkkk
excelente!!!
tempão que não passava aqui, uma semana excelente pra ti!!!

Ozzy, the Wizard disse...

Os visitantes são sempre bem-vindos.
Voltem sempre.
Tem tanta coisa acontecendo (ou não, como diria Caetano) na minha vida, que acho que a série "Minha vida, como ela é..." irá durar muitos episódios.
Ave!

Unknown disse...

Putz!!! � bom que vc paga o que t� me devendo...haushauhsuahsausau

HOmens viu....

beijooooos

Anônimo disse...

Situação inusitada, daqui a pouco é capaz desse cara me perguntar como fazer para se livrar da mulher! Texto muito bem escrito, parabéns.

Abraço,

Urso Branco