19 de agosto de 2006

O Retrato da Galeria de Cristal

Viajo por veredas insondáveis. Caminhos alheios às rotas tradicionais. Meus pés me conduzem, muitas das vezes, por trilhas longínquas, paisagens inusitadas, vales surreais e montanhas suntuosas. Raramente estas trilhas me lançam em grutas obscuras, tenebrosas, mas aprendi a escorregar por suas paredes, e logo estar livre. Outras vezes, acabo em penhascos e ribanceiras íngremes, que exigem muito de minha força física, e mais ainda de minha míope visão, para encontrar um local seguro para apoiar meus pés e mãos.

Mas meus passeios não se dão apenas em meio à natureza. Sou nascido e criado entre outras pedras, estas misturadas ao asfalto, diga-se de passagem. Nestes caminhos urbanos (mais hostis e que me trazem uma sensação muito maior de solidão) muitas vezes encontro, ou “vou de encontro”, a fatos, pessoas e coisas únicas.

Em uma destas caminhadas, deparei-me, não sei como e quando ao certo, dentro de uma linda sala azul. Suas paredes de quartzo logo me deixaram em estado de transe, sem me preocupar com o tempo, ou qualquer outra coisa, fora daquele espaço cintilante.

À primeira vista, me parecia um cubo fechado, com luz proveniente de todos os lados. Havia, atrás de mim, uma porta por onde entrei, que alternava entre o azul claro e o azul celeste, tornando, assim, seu contorno, ora perceptível, ora totalmente invisível.

Olhando pra diante, percebi que havia outra porta e, ao lado desta, um pequeno painel em forma de janela. Fui até ele e comecei a observar atentamente o que ali aparecia: pequenos quadrados coloridos, com imagens variadas, como um catálogo de uma galeria de arte.

Compreendendo onde eu estava, decidi passar pela entrada ao lado da janela. Ali dentro, a mesma cor azul provinha do chão e do teto, e de todas as paredes. Era um amplo salão (cúbico novamente), quase do tamanho de um estádio. Possuía em suas paredes quadros e mais quadros, de tamanhos e cores variadas. Como sua parede era imensamente alta, as fileiras de quadros estavam colocadas sobre pedestais de vidro, que passaram despercebidos em meu primeiro olhar. Nos cantos do imenso salão, escadas transparentes ligavam o primeiro ao último nível.

Vaguei aqui e ali, e, após caminhar religiosamente por todo o primeiro andar, resolvi então procurar pelo sétimo quadro, do sétimo lance de escadas, que se localizava ao sul de onde eu havia entrado. Era apenas um desejo provindo de uma intuição, nada mais. Como uma criança que brinca em uma enorme caixa de areia e cria, ali, regras para um mundo diferente, decidi usar um critério qualquer para tentar encontrar algo inusitado.

Subi cuidadosamente os degraus de vidro, até alcançar a sétima fileira. Dirigi-me para a direita, e encontrei o sétimo quadro. Era uma retrato pintado em tom suave, mas com cores vibrantes, ao estilo de Johanes Vermeer, pintor holandês do século XVIII. A luz provinda da própria parede transformava-o em uma fotografia digital. O retrato possuía 43 cm de comprimento, por 34 cm de largura. A moldura era fina e dourada. Suas cores, retiradas do vermelho vibrante, davam uma aparência vívida à figura ali pintada: uma garota de aproximadamente 21 anos de idade, ruiva, de pele branca salpicada de sardas, de olhos verde-claros, com lábios grossos, pescoço e ombros desnudos, usando uma gravata fina, preta, presa com um nó duplo e uma possível blusa branca, de alças finas, que passara por trás de sua nuca.

É uma imagem que causa forte impacto, no primeiro momento, proveniente do contraste entre o verde esmeralda dos olhos, e a tonalidade rósea da pele da modelo. Ao observá-la à distância, percebi que o tamanho do quadro guardava a proporção humana. A modelo teria, deduzindo, aproximadamente 1,65 m de altura, talvez um pouco mais. Pela envergadura dos ombros, e o torneamento do pescoço, sugeria tratar-se de uma atleta, ou, no mínimo, uma praticamente assídua de exercícios físicos. A altivez do olhar apresenta a disposição de quem já fez muito em sua infância, como jogar bola na terra, subir em árvores, correr de um lado pra outro, ou seja, uma pessoa que adora movimento. Parece alguém que gosta de praticar esportes de contato físico, onde o uso da agilidade, da força, do raciocínio rápido e da ação são muito importantes. O arranjo dos cabelos, presos, porém de maneira a destacar o pescoço e ombros, dá a entender que foram preparados para a fotografia. Trata-se, portanto, de um momento pensado e elaborado. Preparado para determinado fim. Não cheguei à conclusão alguma com relação a qual finalidade serviria o retrato: a um acervo familiar; a um trabalho encomendado por uma agência; a uma simples brincadeira com a câmera; ou para ser enviada para amigos ou amigas. Não sei. O importante foi o que seu passou instantes depois.

Em um segundo momento, ao contemplar atentamente os detalhes do quadro, fiquei curioso com a força que emanava de seu olhar. A Monalisa, de Leonardo da Vinci, intriga a seus espectadores pelo sorriso enigmático. Este quadro, além de sugerir um sorriso, me intrigou pela vida que fluía dos olhos. Toda esta energia escapava à cena que estava a sua volta. Dentro daqueles olhos não estava em andamento a performance de uma modelo, ou de alguém que desejava ser fotografada. Ali, como um cristal iluminado, estavam atravessados os raios de uma juventude em toda a sua força, plena de vontade de viver momentos intensos, seja em terra, água ou ar. Ali se encontravam, em sua plenitude, toda a feminilidade de sua proprietária, assim como a insegurança dos sonhos ainda não realizados. Como portas de entrada e saída, estes olhos transmitiam o desejo de um afago fraterno, a vontade de ouvir palavras de incentivo, ou de compreensão em momentos difíceis. Por seus olhos percebi o quanto as palavras significam, não pelo som, mas pela potência que move toda a face. Apenas parte do ouvido esquerdo estava descoberta, testemunhando a predisposição para ouvir palavras que fossem dita com tamanha força que pudessem tocar seu ser, não para despertar a paixão (pois ela emana paixão), mas para ouvir a proposta de um contrato de cumplicidade entre modelo e espectador. Seus lábios, rubros e volumosos, encenavam um momento misto de seriedade e sensualidade. Por trás dos mesmos, oculta pela formalidade do momento, uma risada aguardava o momento certo para explodir, finalizando em um lindo sorriso (isto se não houvesse chegado antes o cansaço do momento, que a influenciou, talvez, suponho que logo após a execução do retrato, a abaixar a cabeça e deixar passar por sua boca um suspiro). Estes mesmos lábios, ao acompanhar o ritmo intenso do corpo, ao longo da vida proferiram gritos de euforia, dor, raiva, vibrando com suas vitórias, ou deixando escapar o peso da decepção em algumas derrotas, e com isto algumas palavras de auto-reprovação (sem falar em alguns palavrões, de vez em quando, pois se trata de uma modelo do século XXI, e não de uma freira do século XVII). E, sem dúvida alguma, pelo beleza singela e quase infantil da linda modelo, eles também devoraram muito bolo de cenoura, e várias barras de chocolate. Mas, mais importante que isto foram as palavras não pronunciadas por estes lábios. As frases ditas entre sorrisos, que tinham nos olhos seus aliados para dizerem absolutamente tudo. Os beijos experimentados pelos mesmos: alguns dados com a insegurança de quem não sabe se conquistou ou foi conquistada; outros com a certeza absoluta de estar envolvendo o mortal que a beija em um encantamento profundo. O pescoço e cabelos dela traziam um passado perpetuamente presente: o carinho recebido, dado pelos pais e avós, em tempos de criança. A mão que passava por entre os cabelos, afagando-a de leve para fazê-la dormir, ou atrapalhando seu penteado, nos momentos de brincadeira.

Ainda assim, este retrato traz o mistério da infância diferente de outras meninas, com brincadeiras que envolviam mais destreza e força, do que a delicadeza de outras pequeninas. Talvez em sua infância ela não fosse assim tão bonita, e até pode ter se sentido o “patinho feio” enquanto era pequena, não sei. Todo ser humano é resultado de uma seqüência de lutas: luta para se afirmar enquanto indivíduo na família, primeiramente; luta para se afirmar enquanto indivíduo em sua vizinha; em sua escola; em qualquer grupo em que participe. Até descobrir que, o mais importante, é você descobrir que tipo de indivíduo você é pra você mesmo, ou seja, se conhecer.

A possibilidade de minha modelo (e digo “minha”, pois vou levá-la comigo por onde for) também ter se sentido feia, são inúmeras. Todo ser humano um dia sentiu-se rejeitado. Importa saber quando isto aconteceu, e o que fizemos com este momento: aprendemos que não podemos ser amados por todos, ou concordamos com a rejeição, e passamos a rejeitar a nós mesmos. E era isto que este quadro me dizia, naquela face tão bela e silenciosa ali, diante de mim. Eu estava diante de alguém que, distante no tempo e no espaço, me ensinava a lição da persistência e da determinação. Acho que, em seu há alguém que busca a perfeição em tudo o que faz. Uma garota-menina-mulher que se entrega totalmente àquilo que faz, e tenta faze-lo da melhor maneira possível, em resumo: uma pessoa apaixonada pela Vida.

O tempo que fiquei diante deste retrato, não sei, e também não me interessava. Estava em transe. Transcendente. Transpassado por dezenas de idéias que me vinham à cabeça, através daquele retrato. Parecia que estava conversando com a pessoa ali exposta, e ela, contando sobre todos seus feitos, brigas no colégio ou na rua, desafios na juventude, apostas com homens que a julgavam apenas uma menina frágil.. Tudo. Ela dizia-me tudo. Eu estava ali, como espectador e aluno, desfrutando de sua beleza, e aprendendo pelas palavras não ditas ali.

Foi então que lembrei de ver o nome do quadro (coisa que ainda não havia reparado, e que, costumeiramente eu faço sempre).
“Michelle”!
Não podia haver nome mais lindo, e mais adequado para tal quadro. Este nome vem do hebraico: “Mikha-el”, e seu significado é uma pergunta: “Quem é como Deus?”. Suas variações são inúmeras: em inglês “Michael”; em russo “Mikail”; em italiano “Michel”, em espanhol e português “Miguel”, que é o nome de meu pai. Na cabala judaica, é o nome da terceira ordem superior dos anjos, os arcanjos, e são três os que a compõem: Gabriel, Rafael e Miguel. Este nome dá ao seu possuidor, a capacidade de enfrentar a tudo e a todos, e sempre seguir adiante, por assumir sua pequenez e apresentar o Deus Criador como o mais poderoso de todos. O anjo Miguel, que nas representações da Renascença aparece com uma espada em punho, luta e sobrevive, exclamando com vigor que não há nada que possa estar adiante de si, pois ele, enquanto anjo, depende totalmente de seu próprio Criador. Não há ninguém semelhante à divindade que está ao redor deste anjo. Um anjo livre, que quer seu lugar ao lado de alguém que o ame.

Pude perceber, então, o porquê deste retrato emanar tanta potência em todas as suas formas. Estava eu diante de um anjo. Sim! Anjo de formas humanas, ou uma humanidade angelical. Em seus olhos, ora verdes, ora azuis, contemplei seu passado de lutas e vitórias. Suas dores e medos. Sua força e fraqueza. Não foi necessário muito esforço da minha parte imaginá-la de pé, diante de mim. As alças brancas compondo um vestido singelo. Seus longos braços, brancos e fortes. Seu cabelo preso. E suas longas asas abertas. Ao nosso redor, um mar azul esverdeado sem ondas, com um céu de nuvens alvas.

Isto me comoveu. E compreendi quão pequeno sou diante de galeria tão imensa. Cada quadro, e cada retrato, encerra um universo de experiências e expectativas. Muitos com sofrimentos terríveis, outros simplesmente sobrevivendo. Precisamos contemplar mais uns aos outros.

Hoje eu contemplo um anjo, e fico a pensar. “Será que um dia, em outro lugar, este anjo que hoje vi, também me contemplará?”.

Um comentário:

Anônimo disse...

que viagem!
de certo que a mulher merece, mas, e apenas uma foto porra! (essa foi do snow, hehehe!)
te digo sinceramente que se voce escrever algo assim para alguma mulher; ta na mao!
queria escrever bonito assim,
comeria todo mundo!
grande abraco do fa #1,
glaucio.